por Marília Moreira
Festejado no mês de março, o circo ainda vive certo desprestígio no âmbito das artes. Em Salvador, o circo-escola Picolino é um dos símbolos da resistência de muitos artistas circenses que se engajam em transmitir os saberes desta arte, principalmente, a crianças e adolescentes carentes. Nesta entrevista, o diretor Anselmo Serrat relembra a história da sina itinerante do circo, que depois de ter passado por Itapuã, Ondina e Barris mais uma vez sofre ameaças de sair do local onde está situado, na orla de Pituaçu, e ir para o Parque da Cidade. "Quando houve essa negociação, eles fizeram uma maquete, eu aprovei a maquete e fora isso a gente tinha que negociar os direitos legais de posse da terra. Quando começamos a discutir a questão da indenização, eles resolveram deixar esse problema social, educativo e cultural.[...] Nunca foi negociado, aproveitaram para deixar o problema para gestão seguinte [...] São 17 anos de trabalho nessa área, de criação e de formação. O lucro que nós deixamos para essa cidade não se mede em dinheiro, se mede em vidas", afirmou. "Mas a gente é de circo, temos uma resistência que eles nem imaginam", finalizou.
Bahia Notícias - Recentemente a Companhia Picolino apresentou, no Domingo no TCA, o espetáculo “Guerreiro”. Para chegar até esse momento vocês viveram muita coisa, afinal são mais de 20 anos de circo. Relembre um pouco dessa história.
Anselmo Serrat - Infelizmente, nessa apresentação de Guerreiro no TCA a gente atingiu menos da metade da lotação do teatro. Você citou a Companhia Picolino, mas nossos núcleos não são tão organizados assim. As coisas acontecem muito de momento. Na verdade, acho que o próprio circo surgiu assim, do momento.
BN - E como foi?
AS - A escola começou em 1985 aqui em Salvador, mas desde que eu e minha ex-companheira Verônica Tamaoki morávamos em São Paulo, nós éramos envolvidos com grupos de circo e teatro. Nós tínhamos um trabalho de praças, de saltimbancos, mas eu sentia muita saudade da Bahia. Resolvemos voltar para a Bahia. Na época, fechamos um contrato de um mês com o maior shopping da cidade e fizemos uma temporada de um mês dentro desse shopping. Depois disso, uma parte do grupo seguiu viagem, outra ficou aqui. Nós continuamos seguindo com o grupo Tapete Mágico, atuando em clubes, em lugares públicos. E sempre, após cada apresentação nossa, havia uma procura muito grande da criançada querendo brincar e a gente promovia essa brincadeira. Então fomos percebendo que existia um público interessado nessa brincadeira, que é o circo. Ainda em 1985, começamos a procurar um lugar para estabelecer a escola. A gente já sabia que seria uma escola porque tinha uma demanda. Durante essa procura pela instalação física do circo, ficamos também em uma barraca de praia, em Itapuã, que se chamava “Barraca Tapete Mágico”. Nessa barraca a gente fazia oficinas e shows nos finais de semana e dava muita criança. E a gente foi juntando tudo isso e fomos recebidos, depois dessa experiência, pelo pessoal do circo Troca de Segredos, que funcionava em Ondina. O circo Troca de Segredos era uma casa de eventos. Na verdade, era um circo de lona que revelou diversos músicos do final da década de 70 início da de 80. Fizemos a proposta de montar as oficinas lá e a Escola Picolino também nasceu. Botamos um anúncio no jornal divulgando as oficinas e uma jornalista viu, nos procurou e fez uma matéria muito bonita para o jornal. E essa matéria deu um retorno incrível! No primeiro mês a gente já tinha trinta alunos e nós mesmos ficamos assustados com a repercussão. No final, tínhamos montado duas turmas completas com 30 alunos. Surpresa para todos e uma alavancada na história do circo da Bahia. Todos os alunos eram pagantes, o que para gente foi um alívio de vida ter o dinheiro certinho todo mês; como éramos saltimbancos antes, dependíamos de chapéu. Nós ficamos lá um ano e meio e o circo foi derrubado pela prefeitura. Aí começou a itinerância. E a gente percebeu, logo no primeiro ano de escola, que o circo mexia com as crianças de uma maneira muito séria, muito mais do que podíamos imaginar. Nós começamos a perceber que muitas daquelas crianças eram encaminhadas pelos serviços pedagógico e psicológico das escolas regulares.
Foto: Arquivo
BN- Como esse perfil de escola particular mudou?
AS - As mães e pais falavam que as mudanças eram perceptíveis. E aí, em 1986, a gente determinou que esse fator transformador do circo não deveria estar restrito a quem pudesse pagar. Começamos a procurar parcerias com o intuito de diversificar essas turmas. Fizemos uma parceria com o Juizado de Menores que durou um ano. E foi uma convivência muito bonita, devido ao apoio mesmo do juizado com roupas adequadas, merenda. No entanto, no final desse ano, o contrato não foi renovado e essa experiência foi quebrada. Durante alguns anos eu ainda encontrei alguns dos 10 meninos dessa turma, já não mais crianças, todos eles bem colocados em alguma profissão e todos afirmando que aquele momento foi fundamental para eles. Isso é uma coisa que vem mesmo mostrar como o circo mexe com essas pessoas. Um tempo depois assinamos um convênio para atender menores infratores. Nessa época, funcionávamos no espaço Xisto, nos Barris. Foi um trabalho bem difícil e complicado por ter sido interrompido após três meses. Tanto que, a partir dessa experiência, nos posicionamos a fechar convênios que durassem um ano no mínimo. Se continuássemos, seria como dar um sorvete para o menininho que está ali olhando, morrendo de vontade. A gente estava se sentindo fazendo uma boa ação. E nunca pretendemos fazer uma ação social. A gente já entendia que era uma ação educativa. E foi o Projeto Axé, em uma parceria firmada em 1990, que nos deu a sustentação para caminhar nesse sentido. Nessas turmas, os meninos que participavam das oficinas viviam em situação de rua e traziam doença de pele, vícios, drogas e outras coisas para dentro do circo. Mesmo com todas as dificuldades, o resultado foi fantástico. Boa parte dos nossos educadores e instrutores pertenceram a essa primeira turma do Projeto Axé. Isso foi o trabalho continuado que permitiu. Mas isso gerou um problema sério aqui dentro.
BN - Que tipo de problema?
AS - Os meninos eram meninos em situação de rua e, de fora, eram vistos assim. Os pais dos meninos das turmas particulares tiveram uma rejeição muito grande. Nessa época, tínhamos três turmas pagas: uma de manhã e duas de tarde, sendo que uma delas era de meninos de quatro a oito anos e dividia o horário com os meninos do Projeto Axé. Os pais começaram a tirar seus filhos. Primeiro começaram a questionar o uso dos mesmos aparelhos – compartilhar os colchões usados pelos meninos do Axé – e sugerir que tínhamos de separar. Os meninos, quando chegavam aqui tomavam banho, eram asseados, todos tinham um kit. Perdemos muitos alunos. Na verdade, as turmas particulares quase fecharam.
BN - Como o circo passou a sobreviver sem o dinheiro das mensalidades?
AS - Basicamente da parceria com o Projeto Axé. Que, na verdade, começou a ficar complicado para a gente, pois, na época em que tínhamos cinco turmas aqui, incluindo particular e conveniada, aumentamos o número de funcionários. Depois, para manter isso, ficou complicado.
BN - Qual diferença você enxerga no desenvolvimento dessas duas turmas, a particular e a conveniada?
AS - A gente pensando no circo, enquanto arte, os meninos e meninas de classe média, quando chegavam aos 14 anos, eram tirados da escola de circo para começar a se preocupar com o vestibular. A saída deles nessa idade retirava toda a possibilidade de sequência na carreira artística, inclusive porque o circo não era visto como uma profissão por esses pais e mães. Já para as crianças de rua, era uma luz que se acendia de possibilidade para a vida. E para o circo, também, pois era uma mão de obra que nascia, que começava a ser formada. Então, esse investimento tinha esses dois bônus: para as crianças e para o circo. Juntando as duas coisas, foi aí que começamos a formar artistas de verdade.
BN - Como se deu essa formação de artistas e instrutores?
AS - Esse trabalho foi se fortalecendo e nós chegamos em um ponto que começamos a pensar em como crescer tecnicamente. Nós precisávamos trazer professores mais experientes do que os que a gente tinha. Então nós fomos em busca disso e conseguimos. E depois, nos perguntamos como tornar esses jovens artistas crescerem enquanto indivíduos, porque muitos deles não frequentavam mais a escola. Foi aí que começamos a promover aulas regulares e cursos de formação de instrutores, que duraria dois anos. A primeira turma, no entanto, justamente por causa do processo de formação, levou quatro anos. Nessa primeira temporada, nosso intuito era que os jovens que se formassem enquanto instrutores tivessem terminado o ensino médio. Esse curso acabou acabou por formar uma mãe de obra habilitada a lidar com meninos em situação de rua. Afinal, eles falam a mesma língua, têm o hábito, a malandragem, para se comunicar com essa galera. Já temos 65 instrutores formados em cinco turmas; 80% deles continua trabalhando com isso. Diversas escolas e instituições baianas mantém o circo como uma atividade de arte-educação, atividade lúdica. Lá dentro, quem dá aula, são muitos dos instrutores formados aqui.
BN - Como se formou a Companhia Picolino, que apresentou recentemente o espetáculo “Guerreiro” no TCA?
AS- Na ECO-92 nós levamos cerca de 20 crianças. A mais nova deveria ter cerca de sete anos e o mais velho 14. Foi muito incrível, tivemos uma participação muito boa e recebemos vários convites para viajar para o Canadá, para a França, No entanto, por falta de organização e despreparo nosso na época, acabou que não aconteceu. Isso gerou o início da Companhia Mirim da Escola Picolino, que se apresentou por muitos lugares. E essa galera cresce e vira a Companhia Picolino, que a gente passa a chamar desse jeito a partir do espetáculo “Panos”, “Batuque” e “Guerreiro”. A partir desse último espetáculo, em 2000, é que há outra quebra na estrutura da Picolino. É quando a escola completa 15 anos e tanto a escola quanto os alunos e os espetáculos de final de ano ficam sob coordenação dos instrutores. E eu passei a cuidar só dos espetáculos da companhia e da direção da associação. A Companhia Picolino faz parte de uma companhia maior organizada pela Holanda que junta países dos cinco continentes (sendo dois países da África). Essa companhia se reúne durante um mês na Holanda, monta um espetáculo e o apresenta durante três meses em turnê. A companhia chamada de “Circo das Mil Faces” é formada por circo, acrobatas, dançarinos, acrobatas. Aqui no Brasil a gente só viaja sob contrato e levamos espetáculos mais baratos e fáceis como o “Cenas Cotidianas”; fizemos, por exemplo, o Palco Giratório e passamos de Santa Catarina a São Luiz do Maranhão. Foi esse espetáculo um dos primeiros a serem apresentados no início do projeto Domingo no TCA.
Cena do espetáculo Guerreiro | Foto: Maíra do Amaral
BN - Quando você estava falando da história do projeto Axé, você comentou que a escola funcionou um tempo no Espaço Xisto, nos Barris. Também houve uma época em Itapuã. Como vocês chegaram na sede localizada em Pituaçu?
AS - É sina de circo ser itinerante. A gente não queria ser tão itinerante, mas também são 28 anos. O circo Troca de Segredos foi derrubado pelo prefeito na época no meio da madrugada. Quando a gente chegou lá, no lugar do circo, não tinha mais nada. Então, conseguimos com o secretário de Cultura na época, que era o [José Carlos] Capinam, o porão do Espaço Xisto. Era um lugar cheio de entulho, sujo. Eu, Verônica, junto com os professores da época tiramos o equivalente a dois caminhões de entulho. Limpamos, lavamos o porão e retomamos a escola de circo. Lá depois virou o Espaço Xisto. Ainda restam marcas da nossa passagem por lá. A TVE até gravou um documentário sobre a Picolino que mostra o período em que estivemos no Xisto.
BN - Como foi essa época?
AS - Quando estávamos lá, fomos convidados para participar de um festival internacional de circo infantil, na França. Essa foi nossa primeira viagem internacional. Fomos para França com 14 crianças, eu, Verônica e uma mãe que acompanhou. A mais nova, Luana [Serrat], minha filha, tinha sete anos e mais velha tinha 13 anos. Participamos do festival, o espetáculo da Picolino foi o maior sucesso. Nessa cidade no interior da França, as crianças foram expulsas de vários restaurantes, porque eram brasileiras e faziam muito barulho. Depois do espetáculo, no dia seguinte, todas as lojas tinham uma bandeira brasileira e só tocava música brasileira. Foi muito incrível. Quando a gente voltou para Salvador, feliz da vida com a repercussão toda, encontramos nossas coisas todas do lado de fora, em um corredor. Havíamos sido despejados da Biblioteca Central. Mais uma vez na noite, escondido. Mais uma vez era a cara da política. Ficamos muito mal com isso. Arrumamos um espaço emprestado, chamado bar Vagão, no Rio Vermelho, que até hoje eu acho que ainda está lá. Pertencia a uma banda chamada Rumbaiana, que tinha sido proibida de fazer shows lá por causa do barulho e emprestaram para gente fazer a escola lá. Mas era muito pequeno, muito apertado, não dava para continuar lá. Uns professores circenses disseram que tinha visto uma lona jogada em Feira de Santana. Fomos lá e compramos a lona, mas não sabíamos onde montar. Fomos montar no Aeroclube, que era uma velha discussão com a prefeitura. Levamos para o Aeroclube, montamos a lona. Não tinha luz, não tinha água, não tinha nada. Isso foi em outubro e novembro de 1999. Dois dias depois, recebemos um fiscal da prefeitura que nos deu um prazo de 48 horas para tirar tudo de lá. Corremos atrás de um e de outro, chegamos em políticos e o secretário de Comunicação da Prefeitura, conhecia o nosso trabalho e sabia o que a gente estava fazendo, enviou uma carta para outro órgão da prefeitura com a ordem para aguardar. O circo só poderia ser desmontado quando alguma solução fosse encontrada para a Picolino. Ficamos lá sete anos, botamos luz, água, custeamos tudo, negociamos com a Coelba. Aí começou a briga para tirar a gente de lá novamente, o que durou uns dois ou três anos. Primeiro diziam que ia ser construído um parque no Aeroclube, teve muita discussão na época que envolveu a comunidade da Boca do Rio, que brigava pela permanência do circo. Eles citaram o terreno e terraplanaram todo o terreno. Depois de muita briga, fomos chamados no governo em uma sala de negociação e a prefeita de época disse que nós tínhamos apenas 48 horas para sair dali, porque senão a máquina ia passar por cima. O advogado do Projeto Axé, que era nosso parceiro, e foi avisado que não deveria mais enviar as crianças para o circo porque estavam canceladas as atividades. Eu disse que teriam que passar a máquina por cima de mim, porque eu vou estar em cima do circo eu não vou descer. Não derrubaram.
BN - E o que aconteceu depois disso?
AS - Ficou o impasse e aí mandaram uma comissão para negociar comigo. Fizeram uma proposta que não envolveu dinheiro, apenas mudança de local e infraestrutura e o local seria preparado para abrigar a gente. Eu fui burro na época, poderia ter pedido dinheiro, uma indenização, sou péssimo negociante. Idiotamente eu aceitei. Eles terraplanaram, criaram uma estrutura de madeirite, colocaram luz, cerca. Tava bem bonitinho o terreno e deram o caminhão para mudança. Nós viemos para Pituaçu, nos instalamos onde estamos há 17 anos. E, novamente, estamos ameaçados de sair daqui desde a gestão do prefeito João Henrique. Nós recebemos a visita de um secretário que disse que nos tínhamos 24 horas para sair daqui. Claro, brigamos, discutimos. Eles disseram que iam dar um loteamento para a gente no Parque da Cidade e que iam mudar a gente para lá em um mês. Eu disse que não poderíamos mudar, porque nós trabalhamos com alfabetização e era meio do ano. Nós tínhamos 20 crianças sendo alfabetizadas, se tirassem gente daqui, o processo de alfabetização seria interrompido e isso é crime. Marcaram a mudança da gente pata janeiro de 2010. Perdemos as parcerias que tínhamos porque estávamos saindo daqui e eles ficaram nos devendo uma série de coisas. Em 2010 não falaram mais nada. Quando houve essa negociação, eles fizeram uma maquete, eu aprovei a maquete e fora isso a gente tinha que negociar os direitos legais de posse da terra. Quando começamos a discutir a questão da indenização, eles resolveram deixar esse problema social, educativo e cultural. Na época, o superintendente da Sucom, Cláudio [Silva], preencheu documentos, encaminhou para o prefeito, com informações de que o circo aceitava a mudança, mas queria negociar. Nunca foi negociado, aproveitaram para deixar o problema para gestão seguinte. Hoje nós ganhamos uma ação cautelar, o direito de uso do solo é nosso, o direito de usucapião. São 17 anos de trabalho nessa área, de criação e de formação. O lucro que nós deixamos para essa cidade não se mede em dinheiro, se mede em vidas. Aqui ninguém enriqueceu. Algumas pessoas até estão bem de vida lá fora porque conseguiram através do que aprenderam aqui. A gente aguarda a negociação. Eu não tenho interesse em ficar no meio de uma guerra imobiliária. A gente quer poder voltar a trabalhar decentemente. Eles ficam cerceando a gente, todas as possibilidades de sobrevivência. Mas a gente é de circo, temos uma resistência que eles nem imaginam.
BN - Como foi essa época?
AS - Quando estávamos lá, fomos convidados para participar de um festival internacional de circo infantil, na França. Essa foi nossa primeira viagem internacional. Fomos para França com 14 crianças, eu, Verônica e uma mãe que acompanhou. A mais nova, Luana [Serrat], minha filha, tinha sete anos e mais velha tinha 13 anos. Participamos do festival, o espetáculo da Picolino foi o maior sucesso. Nessa cidade no interior da França, as crianças foram expulsas de vários restaurantes, porque eram brasileiras e faziam muito barulho. Depois do espetáculo, no dia seguinte, todas as lojas tinham uma bandeira brasileira e só tocava música brasileira. Foi muito incrível. Quando a gente voltou para Salvador, feliz da vida com a repercussão toda, encontramos nossas coisas todas do lado de fora, em um corredor. Havíamos sido despejados da Biblioteca Central. Mais uma vez na noite, escondido. Mais uma vez era a cara da política. Ficamos muito mal com isso. Arrumamos um espaço emprestado, chamado bar Vagão, no Rio Vermelho, que até hoje eu acho que ainda está lá. Pertencia a uma banda chamada Rumbaiana, que tinha sido proibida de fazer shows lá por causa do barulho e emprestaram para gente fazer a escola lá. Mas era muito pequeno, muito apertado, não dava para continuar lá. Uns professores circenses disseram que tinha visto uma lona jogada em Feira de Santana. Fomos lá e compramos a lona, mas não sabíamos onde montar. Fomos montar no Aeroclube, que era uma velha discussão com a prefeitura. Levamos para o Aeroclube, montamos a lona. Não tinha luz, não tinha água, não tinha nada. Isso foi em outubro e novembro de 1999. Dois dias depois, recebemos um fiscal da prefeitura que nos deu um prazo de 48 horas para tirar tudo de lá. Corremos atrás de um e de outro, chegamos em políticos e o secretário de Comunicação da Prefeitura, conhecia o nosso trabalho e sabia o que a gente estava fazendo, enviou uma carta para outro órgão da prefeitura com a ordem para aguardar. O circo só poderia ser desmontado quando alguma solução fosse encontrada para a Picolino. Ficamos lá sete anos, botamos luz, água, custeamos tudo, negociamos com a Coelba. Aí começou a briga para tirar a gente de lá novamente, o que durou uns dois ou três anos. Primeiro diziam que ia ser construído um parque no Aeroclube, teve muita discussão na época que envolveu a comunidade da Boca do Rio, que brigava pela permanência do circo. Eles citaram o terreno e terraplanaram todo o terreno. Depois de muita briga, fomos chamados no governo em uma sala de negociação e a prefeita de época disse que nós tínhamos apenas 48 horas para sair dali, porque senão a máquina ia passar por cima. O advogado do Projeto Axé, que era nosso parceiro, e foi avisado que não deveria mais enviar as crianças para o circo porque estavam canceladas as atividades. Eu disse que teriam que passar a máquina por cima de mim, porque eu vou estar em cima do circo eu não vou descer. Não derrubaram.
BN - E o que aconteceu depois disso?
AS - Ficou o impasse e aí mandaram uma comissão para negociar comigo. Fizeram uma proposta que não envolveu dinheiro, apenas mudança de local e infraestrutura e o local seria preparado para abrigar a gente. Eu fui burro na época, poderia ter pedido dinheiro, uma indenização, sou péssimo negociante. Idiotamente eu aceitei. Eles terraplanaram, criaram uma estrutura de madeirite, colocaram luz, cerca. Tava bem bonitinho o terreno e deram o caminhão para mudança. Nós viemos para Pituaçu, nos instalamos onde estamos há 17 anos. E, novamente, estamos ameaçados de sair daqui desde a gestão do prefeito João Henrique. Nós recebemos a visita de um secretário que disse que nos tínhamos 24 horas para sair daqui. Claro, brigamos, discutimos. Eles disseram que iam dar um loteamento para a gente no Parque da Cidade e que iam mudar a gente para lá em um mês. Eu disse que não poderíamos mudar, porque nós trabalhamos com alfabetização e era meio do ano. Nós tínhamos 20 crianças sendo alfabetizadas, se tirassem gente daqui, o processo de alfabetização seria interrompido e isso é crime. Marcaram a mudança da gente pata janeiro de 2010. Perdemos as parcerias que tínhamos porque estávamos saindo daqui e eles ficaram nos devendo uma série de coisas. Em 2010 não falaram mais nada. Quando houve essa negociação, eles fizeram uma maquete, eu aprovei a maquete e fora isso a gente tinha que negociar os direitos legais de posse da terra. Quando começamos a discutir a questão da indenização, eles resolveram deixar esse problema social, educativo e cultural. Na época, o superintendente da Sucom, Cláudio [Silva], preencheu documentos, encaminhou para o prefeito, com informações de que o circo aceitava a mudança, mas queria negociar. Nunca foi negociado, aproveitaram para deixar o problema para gestão seguinte. Hoje nós ganhamos uma ação cautelar, o direito de uso do solo é nosso, o direito de usucapião. São 17 anos de trabalho nessa área, de criação e de formação. O lucro que nós deixamos para essa cidade não se mede em dinheiro, se mede em vidas. Aqui ninguém enriqueceu. Algumas pessoas até estão bem de vida lá fora porque conseguiram através do que aprenderam aqui. A gente aguarda a negociação. Eu não tenho interesse em ficar no meio de uma guerra imobiliária. A gente quer poder voltar a trabalhar decentemente. Eles ficam cerceando a gente, todas as possibilidades de sobrevivência. Mas a gente é de circo, temos uma resistência que eles nem imaginam.
BN - Existem outras experiências de circo-escola no Brasil com as quais vocês dialogam frequentemente?
AS - Nós temos uma rede de circo social que 22 escolas fazem parte. Mas ao todo no país são mais de 100 escolas. Em Salvador, não é só a Picolino, temos o Circo Maravilha. Outros centros ensinam arte circense também: trabalhos sociais com circo, escolas particulares, como a Via Magia. A maioria dos instrutores foram formados aqui na Picolino, fora isso teve gente que veio do Rio de Janeiro, da Escola Nacional, e começou a conquistar alguns pontos aqui. No Brasil inteiro, toda capital tem uma escola de circo. São Paulo tem uma dúzia, Rio tem uma dúzia.
Foto: Arquivo
BN - A experiência de cerceamento é comum em outros lugares?
AS - Algumas escolas sofrem. Em Minas Gerais, uma escola foi interditada, derrubada. No Rio de Janeiro, a “Crescer e Viver” estava implantada há oito anos e também teve que mudar, mas lá a prefeitura construiu uma estrutura muito melhor do que eles tinham, com lona, som tudo e ainda transformou o espaço um centro cultural também. Brasília teve problema, Joinville teve um problema seríssimo, em vários lugares acontece isso. A gente se organiza, trabalha em festa, essa coisa toda, mas é uma força bruta. Agora nem um deles tinha 28 anos de idade e nem 17 anos plantado no mesmo terreno. Tudo que a gente plantou aqui já deu. Os coqueiros e a vegetação da frente, tudo foi plantado pela gente.
Sede do Circo- Escola Picolino, em Pituaçu. Foto: Arquivo
BN - Verônica, sua ex-companheira, segue com uma pesquisa sobre a memória do circo...
AS - Ela começou com uma pesquisa sobre circo aqui na Bahia. Na época, a Fundação Cultural nos convidou para fazer uma pesquisa sobre circo. A gente, na verdade, queria buscar professores, conhecer pessoas e juntamos uma coisa com a outra. Nós criamos a primeira pesquisa sobre circo na Bahia. Nós tínhamos um carro à disposição, uma máquina fotográfica, um gravador, e a gente saiu viajando, localizando circos e pessoas de circo paradas. Fomos em dez circos, encontramos quinze artistas parados, alguns nós trouxemos para trabalhar com a gente. Isso foi em 1986, foi logo no início. Em 1987, a gente trouxe Pé de Ferro e Jurubeba para trabalhar com a gente, foram os primeiros artistas de circo que a gente trouxe. Nessas idas e vindas, a Verônia, era de São Paulo e sempre ia para lá visitar a família, em uma dessas, ela fez uma entrevista com o Picolino, o (53:05), para juntar nesse material de pesquisa que estávamos montando. Na época, ela não tinha ideia aonde ia parar isso. Quando a gente se separou, ela abriu mão do circo, que tinha tomado um cunho social muito forte, que era mais a minha cara. Ela voltou para São Paulo e levou as pesquisas com ela. Ela tinha uma material muito legal sobre o Picolino, entrevistas gravadas, e deu continuidade a esse processo. Picolino passou todo o acervo fantástico e maravilhoso que ele tinha para ela cuidar e ela mergulho fundo nesse processo. Outras pessoas de circo quando viram aquilo se interessaram e decidiram colocar nas mãos dela suas histórias. Quando ela viu que tinha um acervo fantástico, ela criou o Centro de Memória do Circo, em São Paulo. Foi montada uma equipe especial para recuperação de fotos e documentos. Ela montou uma exposição em uma galeria do centro, onde a história do circo é localizada dentro da história do próprio homem, do tempo da guerra, o movimento da arte moderna, coisas em paralelo, o que acontece com o circo em São Paulo. Claro que o foco é em São Paulo, que um ponto de referência, mas o Picolino também faz parte, a fundação da Escola de Circo do Capão, a criação das cooperativas, várias situações contemporâneas. E outras coisas podem ser acrescentadas. Se cada Estado tivesse 10% do que está sendo feito lá, nesse sentido, a história do circo estaria sendo mais valorizada. A arte circense ainda existe um pouco marginal, é realmente discriminado.
Treino aéreo no Circo Picolino. Foto: Arquivo/ Site
BN - Esse mês é comemorado o Dia Nacional do Circo. Essa data representa uma conquista?
AS - O mês do circo é, na verdade, uma conquista do circense, que tem a ver com os movimentos das escolas. A Câmara do Vereadores de São Paulo instituiu essa data em homenagem ao palhaço Piolin. No Paiçandu, onde ele montou seu circo, muitos artistas modernistas frequentavam que usavam ele como símbolo do movimento modernista nas artes cênicas. Em homenagem a ele, o dia do nascimento de Piolin foi declarado, em São Paulo, o Dia do Circo. Esse ato foi se espalhando, mas, na verdade, nunca foi criado por um decreto nacional o Dia Nacional do Circo. Temos que passar essa demanda para Tiririca, o nosso deputado federal. Ele não tem essa proposta e pouca gente sabe que isso é um ato da Câmara de São Paulo. Teve uma agenda dessas tipo escolar, que soltou uma data errada que marcava o Dia Nacional do Circo para 15 de março e como uma copia da outra, isso foi se espalhando. Nós fizemos uma campanha forte por e-mail para corrigir isso. Ainda tem alguma que soltam errado.
BN - As políticas públicas para o circo melhoraram nos últimos anos?
AS - Desde o início da gestão de Lula até hoje nós conseguimos criar algumas políticas públicas. Antes não existia absolutamente nada. Na verdade, desde quando Gilberto Gil assumiu a Cultura, e também o Juca de Oliveira, é que as discussões começaram a acontecer. É a partir da gestão deles que a política de editais é criada e os recursos passam de R$ 300 mil para R$ 3 milhões. O que não é nada porque R$ 3 milhões é o recurso de um filme nacional. Uma peça de teatro de uma grande companhia custa entre R$ 2 e R$ 3 milhões. Um grande circo quando recebe muito é em torno de R$ 80 mil. Não é muito. A gente precisa não se desmobilizar. Desde a saída de Gil e de Juca, há uma desmobilização muito grande. As políticas implantadas têm um pequeno esvaziamento, as discussões são encerradas, porque elas eram bancadas pelo Ministério. Estamos regredindo em alguns pontos, apesar de que existem políticas e houve avanços, mas as discussões acabaram e a há um grande perigo de todos avanços sumirem, porque as pessoas estão dispersas. As pessoas estão ligadas pela internet, não há encontros presenciais para se discutir o circo. Essas políticas têm de estar ligadas a um plano social muito mais amplo. Elas ainda não são políticas de Estado, mas de governos. Muda o governo, já era.