quarta-feira, 26 de março de 2014

Viva o Circo e que o circo viva e sobreviva no meio de nós

José Cucero 
Que saudade dos antigos circos que passaram céleres como uma flexa pela minha infância e juventude. Quantas recordações!... Lembro-me que a chegada do circo na minha cidade era um acontecimento festivo. Uma autêntica celebração de gente grande e da meninada. Não imaginava nem de longe que aqueles anos seriam tão efêmeros. Uma pena que naquele tempo a sensação de eternidade fez com que não aproveitássemos com mais intensidade nosso antigo cotidiano de absoluta felicidade juvenil. 
Só agora é que nos damos conta da imensa exiguidade daqueles anos de fartura artística e fantasia a nos embalar a própria alma.
Saudade, saudade da alegria inconfundível do velho palhaço com suas brincadeiras arrancando da nossa tristeza o que nela havia de mais alegre e engraçado. Um deus buscando encontrar sorrisos nos semblantes das muitas agruras sertanejas. Espetáculo circense. Sertão das artes, casimiro-coco da fantasia ambulante a carregar no seu bojo um universo de sonhos e sabedoria.
Saudade do mágico a que todos como por pura inocência imaginavam fazer parte da plêiade dos super-homens... Um ser que estava muito além da compreensão humana.
- Não é mágica! Diziam os espectadores. – Isso não passa de magnetismo.
- Uma 'naigadinha' de uma besta ilusão feita para enganar a gente tola! Sentenciavam os mais ousados, tanto na língua quanto na idade.
E nós, pouco queríamos saber de onde estava a tal verdade. O circo nos era tudo. E tudo para nós era o suficiente, o bastante para adocicar as nossas vidas provincianas, paroquiais...
A noite caia. O espetáculo era o nosso estado de graça, assim como nas matinês de sábado e domingo.
Dinheiro, cédulas novinhas pegavam fogo e viravam cinza para em seguida, bem ali na nossa frente serem novamente reconstituídas sob a magia do homem poderoso. Canecas derramavam água e moedas até cansar as nossas vistas. Homens engoliam tochas de fogo, quebravam lajedos nos peitos....Engoliam pregos enormes, espadas, andavam sobre brasa, em pernas de pau e em bicicletas de uma roda só. Tudo era incrível. Um constante desafio a tudo aquilo que chamávamos de impossível. Animais adestrados(coitados) também faziam sua cota de sensacionalismo. Mas os artistas de fato eram quem faziam a diferença. A condição humana nos impressionava justamente pela disposição em encarar o desafio de produzir felicidades e alegria para todos nós, esquecidos nas bibocas daquele mundo esquecido. Naqueles dias a própria vida nos era transformada num passo de mágica.
As baianas lindas e maravilhosas requebravam seus quadris sob o tablado e até lançavam seus olhares maliciosos, assim como seus lenços vermelhos e perfumados sobre os ombros dos adultos. E nós meninos morríamos de inveja querendo também ser grandes só para poder sonhar com aquelas belezuras nos assediando. Afagando nosso olhar e curiosidade com os seus seios robustos, coxas e nádegas em total exuberância. Amávamos todas elas do mesmo modo ousado, estravagante como desejávamos a manga-rosa mais madura situada no topo mais alto da copa da mangueira.
Foram elas, as baiana-dançarinas os motivos dos nossos primeiros pensamentos indecentes para os padrões da época. Aquelas imagens nos perseguiam nas moitas dos arvoredos e até durante os nossos velhos sonhos molhados.
De dia olhávamos os bichos, os macacos principalmente....
De noite, sorríamos com os palhaços, suspirávamos com os saltos rasantes dos trapezistas. E de quebra enamorávamos, confidenciando para nós mesmos, as dançarinas. Verdadeiras minas dos olhos de uma noite negra sem muitas novidades quando sem a presença viva do circo no nosso meio.
O circo era para todos nós o mundo que desejamos construir segundo as nossas utopias mais ingênuas e desafiadoras.
O éden das nossas ilusões mais fantásticas e paradisíacas.
A TV dos tempos modernos antecipada para toda uma geração de românticos provincianos vivenciando a vida possível naquele oco do mundo, carente e distante de tudo. A prova inconteste de que o homem era de fato, insuperável o modelo e a medida de todas as coisas...
O circo nos fazia grandes pensadores de um mundo pós-moderno quase sem nenhum compromisso com o devir.
Só não sabíamos que um dia, toda aquela fantasia pudesse ter um fim tão triste e melancólico como constatamos agora, soterrado que está por uma tecnologia descompromissada com a arte e a cultura; como sendo estas, a verdadeira identidade de um povo.
O circo da alegria hoje se transformara num círculo de tristeza, sobretudo quando sei que jamais poderei mostrar e, tampouco dividir com os meus filhos, toda a maravilhosa e singular experiência contidas nas velhas matinês dos espetáculos das tardes de domingos.
O circo agora é um imenso baú onde guardamos para sempre nossas recordações mais felizes e inesquecíveis.
O circo é parte especial da minha vida em que forçosamente tive que deixar para trás, quase perdida, abandonada nas brumas dos anos da minha meninice.
Coisas que por mais que eu me esforce hoje, não conseguirei experimentar de novo com o mesmo sabor e ímpeto do passado.
O circo agora é apenas uma lembrança a martelar meu peito ressabiadamente. A certeza de que o tempo passou por mim como uma brisa. E que eu envelheci de verdade.
O circo era um acontecimento social dos mais importantes das nossas cidades interioranas, vivendo monotonamente o seu cotidiano de calmaria e paz.
O circo instigava paixões. Ajudava a melhorar nossa auto-estima, assim como a libido de toda uma juventude que já começava a aprender gostar dos valores da rebeldia ante os eflúvios de uma arte medieva, tosca e renascentista.
O circo era uma festa. Um congraçamento entre ricos e pobres, pretos e brancos... Uma alegria sem par que só terminava quando víamos com pesar(quase como atualmente) sua empanada sendo derrubada sobre o chão de barro batido do nosso vazio urbano que a partir de então voltaria a experimentar de novo seu duradouro estágio de solidão profunda.... Dando espaço ao matagal onde nós caçavamos calango e fazíamos uma série de outras travessuras próprias daquela idade.
Como seu teatro de comédia e melodrama o circo era, por assim dizer, nosso cinema de época, épico e poético.
Toda e qualquer possibilidade do sonho e da utopia de viver residia unicamente sob aquela empanada. O circo nos fazia acreditar no mundo e na vida de uma forma diferente.
O circo era uma dádiva de Deus enviada para aplacar as dores do mundo e o sofrimento dos homens.
Com ele, chorávamos e sorríamos no mesmo nível de intensidade dos que se apaixonam e amam intensamente a arte de viver feliz diante da perspectiva da eternidade.
Gritar palhaço pelas ruas e pelas bibocas da zona rural era o máximo:
- “Pompéu, pompéu tua mãe morreu/ e a cabeça do palhaço o urubu comeu”... "Pipoca amedoim torrado/Carreguei tua mãe num carrinho quebrado".
"Eu vou ali e volto já/Vou comer maracujá/Ela tem, mas eu não digo/ Carrapato no umbigo.... E arrocha negrada! Mais um pouquinhooo... Mais um bucadinhoooo... iêaaaaa....."
- "Hoje tem espetáculo! tem sim senhor às 8 horas da noite! Tem sim senhor..."
A garganta da gurizada era o carro-de-som dos dias atuais e os amplificadores da daquela boa-nova para a nossa comunidade. Poucas palavras, sem nenhum ranço de apelação obscena ou duplo sentido que atentasse para a ética, moralidade e os bons costumes como diziam.
Tempos idos que ainda hoje mexem com os nossos sentimentos e nossas reminiscências mais singelas e verdadeiras...
O circo agora, além de não ser o mesmo por uma série de razões... Representa um pedaço do nosso passado que atravessando à duras penas os tenebrosos anos de tempestades conseguira chegar até nós com a sua saudade de gigante.
É fato notório que a arte circense está morrendo. Por isso precisamos não apenas recordar simplesmente o memorial circense, mas sobretudo, lutar para sua preservação. Por tudo que o circo conseguiu proporcionar de bom e construtivo para toda uma imensa geração do passado recente; muito mais do que a TV tem conseguido fazer para a contemporaneidade. É urgente defendê-lo da extinção total numa luta sem trégua da memória contra o esquecimento.
Viva o circo e que o circo viva para sempre no meio de nós, através dos nossos filhos.

Sobre a obra

Um prosaico poema assaz intimista em que as reminiscências da minha infância e juventude se afloram em torno das várias recordações que outrora marcaram intensamente o antigo cotidiano circense das nossas cidadezinhas interioranas.

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